quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Lembranças

Lembranças

I – Do lado de cá

O tempo revira-te inteiro e brinca sutil com seu avesso. Você, insone, vê passar noites e as vira. Nos avessos da noite que no sal das lágrimas e suor uivam, também uiva você à lua em delírio. Ainda que tudo volvesse ao antes-de-agora, mesmo se acordasse em estado de mera existência, tudo se perderia. Mesmo que não soubesse. Das cartas, dos versos, dos banhos frios e cigarros queimando seco sua garganta umedecdia à conhaque, a mais dolorosa é a simples razão, se tem mesmo uma. Sua cara corada, pigmentada de um rosa tão saudável quão caqui maduro já abriga um cadavérico semblante de sofrimento, ou ainda pior, de conformismo. Abriga as lembranças todas, como fossem muitas elas, em tão breve lapso. Ah! As lembranças... Ora, rapaz, sabe que nada te pode socorrer a não Sê-las. O quanto doem, o quanto ela te dói. Uiva à lua, urra em silêncio sua dor a cada gota derramada do sangue azul da esferográfica em contato com as linhas, onde escreve toda a angústia, e a lira delira palavras que seu estro transforma, e que grava com cólera, como se apunhalasse aquela idéia e a lembrança. Como ela te dói... A mulher que possui todos os sonhos, aquela que te espreme vagarosa e violentamente o peito. Estrela ofuscando a luz do mundo, e o fogo do sol. Encanta e queima. Ainda suas folhas estão brancas, muitas delas. E a única coisa que consegue escrever, que te vem de sua real vontade, cabe em poucas linhas do caderno-de-bolso: “Que a lembrança conserve o sabor do encontro, e até da despedida, assim como de tudo entre os dois.”.

II – Do lado de lá

A noite vira ao avesso seu sono bom e se sente violentada pelo seu escuro, que adentra seus pensamentos, como se em suas entranhas úmidas do desejo encontrasse refúgio não te deixando adormecer. E ele entende? Nunca entenderá. Exige agora, o rapaz dos versos, seu amor de imediato. E você entende? Nunca entenderá. O tatear da noite pelas palmas brancas de suas mãos criam uma necessidade plena, e a certeza nunca foi tão forte acerca de que o ama. O mensageiro que te leva a ele todas as noites e traz respostas, mero avanço da ciência transcrevendo palavras dosadas pela esquiva, pelo medo. Seus olhos abrigam todos os sonhos do mundo, seu coração, de todos, é o mais faminto. Fera selvagem, que voraz devora a carne, e te faz sentir satisfação de mera momentaneidade. Também tem suas lamúrias nos delírios da penumbra que cai sobre seu quarto tal qual treva, maldição-do-faraó. Nos mesmos avessos que te vira a noite, que vira a todas as cabeças aceleradas, desprovidas do direito ao gozo do descanso, vira você também, com sabe-se lá quantos rostos. Atrofiada dentro de si mesma, seu rosto pálido de tantos sorrisos e seu corpo saudável de tantos abraços, clamam compreensão no cair da alta madrugada. Insatisfação. Coração voraz. Cabeça de inúmeros sonhos. Acende a luz e na última tentativa de se encontrar por meio de alguém, abre um livro onde à caneta está escrito: "Que a lembrança conserve o sabor do encontro, e até da despedida, assim como de tudo entre os dois." E segue uma mera pretensão, que por cuidados não chegou a seguir o texto, mas na cabeça do rapaz, ali está em letras pouco maiores: Eu te amo.

2 comentários:

Cássio Amaral disse...

Puta texto, pra lá de bom!
Uivamos no grito do inominável, em versos mais despencados das estrelas cadentes. Sabe, esse texto tem muito da minha alma nele.

Abraços.

Cássio Amaral.

Bia disse...

Nossa,
estou sem palavras,
=~

muito lindo e perfeito.
hehe

Beijos.